quarta-feira, 23 de março de 2016

ANÁLISE DO ARTIGO 124 DO CÓDIGO PENAL

1.      INTRODUÇÃO
A temática do aborto no Brasil e no mundo gerou e vem gerado polêmica quanto a sua legalidade ou não. A política legal adotada no caso brasileiro visa a criminalização do ato (arts. 124-127) , salvo em casos de estupro ou recomendação médica (art. 128).
            A intenção do presente tipo penal visa a proteção do sujeito que está em formação no útero materno. Mesmo que este ser em formação ainda não seja considerado uma pessoa sujeita de direitos no sentido lato, o aborto é criminalizado baseado em princípios de proteção da vida intrauterina. No entanto, há a discussão entre estes princípios e os princípios da liberdade individual, valorização da escolha da mulher em interromper ou não a gravidez, e a maior de todas, como combater os efeitos dos abortos clandestinos que causam muitas despesas ao sistema de saúde público e privado devido a sequelas. Uma discussão extensa que, no entanto, será tratada brevemente neste manuscrito.


2.      TIPO PENAL DO ARTIGO 124
O artigo 124 do Código Penal de 1940 traz que: “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de um a três anos”.
Aqui o legislador visou proteger a vida do feto tipificando a conduta materna de provocar o aborto em si mesma ou consentir que outra pessoa lho provoque. Aqui, neste artigo está presente a figura do aborto provocado, com a mulher, segundo Bitencourt (2012, p. 68).
Vale observar a possibilidade de suspensão condicional do processo, presente no artigo 89 da Lei 9.099/95:
“Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)”.

3.      BEM JURÍDICO TUTELADO
O bem jurídico tutelado, para Nucci (2014, p.618), Bitencourt (2012, p. 69), Capez (2013, p.381), primordialmente, o bem protegido pelo legislador é a vida intrauterina em formação.

4.      ELEMENTO SUBJETIVO
O elemento subjetivo é o dolo. O crime não admite a modalidade culposa. Segundo Capez (2013, p.382), o dolo pode ser direto ou eventual. Para ele, no tipo penal “não se admite a modalidade culposa. A conduta do terceiro que, culposamente, dá causa ao aborto, caracteriza o delito de lesão corporal culposa, em que a vítima será a gestante”.

5.      FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS
Segundo Capez (2013, p.380),
“O direito à vida está previsto na Constituição Federal no rol de direitos e garantias fundamentais (Capítulo I, art. 5º). O direito à vida é o direito de não ter interrompido o processo vital, senão pela morte espontânea e inevitável. “(...) São decorrências do direito de não ser morto (ou de continuar vivo): a proibição da pena de morte (art. 5º, XLVII); b) proibição do aborto; c) proibição da eutanásia; d) direito à legitima defesa (...)” (Chimenti et al., Curso de direito constitucional, cit., p. 60)”.

6.      ABORTO VS. HOMICÍDIO
Não se pode confundir o aborto (art. 124) com o homicídio (art. 121) que é matar alguém que já nasceu, e com o infanticídio (art.123) que é matar o próprio filho sob estado puerperal. Segundo Bitencourt (2012, p. 536), a distinção entre aborto e homicídio apresentam duas particularidades:
“[...] uma em relação ao objeto da proteção legal e outra em relação ao estágio da vida que se protege: relativamente ao objeto, não é a pessoa humana que se protege, mas a sua formação embrionária; em relação ao aspecto temporal, somente a vida intrauterina, ou seja, desde a concepção até momentos antes do início do parto”.

7.      SUJEITOS DO CRIME
6.1. Sujeito Ativo
Segundo a doutrina em geral, por ser um crime de mão própria, isto é, só pode ser praticado pela própria gestante, nas duas modalidades: provocar ou consentir que alguém lho provoque aborto.

6.2. Sujeito Passivo
Já o sujeito passivo é o feto, que sofre diretamente com a intervenção da progenitora ou da pessoa que interveio com consentimento da mesma para praticar o aborto.

6.3.Consumação
Trata-se de crime material. O crime se consuma com a interrupção da gravidez e morte do feto.

7.      PARTICIPANTES DO CRIME
7.1. Coautoria
O crime não admite coautoria por se tratar de atos executórios. Estes estão previstos no art. 126, “provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de um a quatro anos”.

7.2. Participação em sentido estrito
Segundo Bitencourt (2012, p. 537),
“Como qualquer crime de mão própria, admite a participação, como atividade acessória, quando o partícipe se limita a instigar, induzir ou auxiliar a gestante tanto a praticar o autoaborto como a consentir que terceiro lho provoque”.

7.3.Provocar e consentir
Segundo Bitencourt (2012, p. 538),
“A mulher que consente no aborto incidirá nas mesmas penas do autoaborto, isto é, como se tivesse provocado o aborto em si mesma, nos termos do art. 124 do CP. A mulher que consente no próprio aborto e, na sequência, auxilia decisivamente nas manobras abortivas pratica um só crime, pois provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque é crime de ação múltipla ou de conteúdo variado”.

8.      ABORTO CONSENTIDO E A TEORIA MONISTA DA AÇÃO
Para Bitencourt (2012, p. 538),
“A segunda figura do art. 124 — consentir que lhe provoquem o aborto — encerra dois crimes: um para a gestante que consente (art. 124), outro para o sujeito que provoca o aborto (art. 126). Em relação à gestante que consente e ao autor que provoca materialmente o crime de aborto consentido não se aplica o disposto no caput do art. 29 do CP”.
Por exceção à teoria monística, Bitencourt ainda no mesmo trecho diz que
“Quem provoca o aborto, com o consentimento da gestante, pratica o crime do art. 126 do mesmo estatuto e não o do art. 124. Assim, por exemplo, o agente que leva a amásia à casa da parteira, contrata e paga os seus serviços é autor do crime tipificado no art.126, enquanto a amásia, que consentiu, incorre no art. 124. Enfim, o aborto consentido não admite coautoria entre o terceiro e a gestante”.

9.      Provas
Em Capez (2013, p.381),
“STJ: “No delito capitulado no art. 124 do CP, para instauração da persecução penal, é imprescindível a prova de sua materialidade. O ônus incumbe ao órgão acusador, não sendo suficiente, para este mister, a simples confissão da acusada. Aborto, diz a medicina, é interrupção da gravidez e, portanto, fundamental, essencial, imprescindível o diagnóstico desta como meio de configuração da infração. 2. Ordem concedida para trancar a ação penal” (STJ, 6ª T., Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 7-11-2000, DJ 18-12-2000, p. 243). A prova pericial poderá ser suprida pela prova testemunhal ou documental”.

10.  TENTATIVA
Segundo Capez (2013, p. 382),
“É perfeitamente admissível. Assim, se há o emprego de determinada manobra abortiva idônea a provocar a morte do feto, e este perece em decorrência de outra causa independente, responderá o agente pela forma tentada do delito em estudo. Haverá igualmente a tentativa, e não crime impossível, na hipótese em que o agente faz a gestante ingerir substância química em quantidade inidônea à provocação do aborto (impropriedade relativa do meio empregado)”.

11.  OUTRAS OBSERVAÇÕES FEITAS POR CAPEZ
a)      Concurso de crimes: Se o agente eliminar a vida da gestante, sabedor de seu estado, ou assumindo o risco da ocorrência do aborto, responderá pelos crimes de homicídio e aborto em concurso formal. Haverá o concurso formal impróprio se o agente estiver dotado de desígnios autônomos, ou seja, com uma só ação ele quer dois resultados (o homicídio e o aborto).
b)     Agravante: Nos delitos de aborto, não incide a agravante do art. 61, caput,  do CP, qual seja, a circunstância de a vítima encontrar-se grávida.
c)      Lei das Contravenções Penais: Contravenção penal: Constitui contravenção penal, punível com multa, “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto” (LCP, art. 20).
d)     Competência: No delito de aborto, o juiz competente é o do local da conduta, e não o do lugar da morte do feto (RJTJSP 122/565; RT 524/358).

12.  JURISPRUDÊNCIA (BITENCOURT – ADPF 54)
“ADPF — Adequação — Interrupção da gravidez — Feto anencéfalo — Política judiciária — Macroprocesso. Tanto quanto possível, há de ser dada sequência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei Fundamental — como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade —, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a arguição de descumprimento de preceito fundamental. ADPF — liminar — anencefalia — interrupção da gravidez — glosa penal — processos em curso — suspensão. Pendente de julgamento a arguição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal. ADPF — Liminar — Anencefalia — Interrupção da gravidez — Glosa penal — Afastamento — Mitigação. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em arguição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia” (STF, ADPFQO 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 27-4-2005). “Pedido de autorização para a prática de aborto. Nascituro acometido de anencefalia. Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto” (STJ, HC 32.159/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 17-2-2004).

13.  CONSIDERAÇÕES FINAIS
A temática do aborto ainda não é uma discussão encerrada em âmbito nacional e mundial. Existem projetos de lei atualmente tramitando e em discussão para visando a viabilidade ou não da legalização do aborto no Brasil a serem realizados por profissionais habilitados. Isso devido a ineficácia em se evitar a prática e para se prevenir das consequências oriundas do aborto feito inadequadamente, buscando diminuir o percentual de mulheres mortas em procedimentos abortivos clandestinos. Por vários fatores, esta pauta ainda está em andamento no poder legislativo, enquanto os abortos continuam acontecendo no Brasil sem nenhuma fiscalização ou orientação.

14.  REFERÊNCIAS
BITENCOURT, C. R. (2012). Penal Comentado, 7ª Edição. São Paulo: Saraiva.
BITENCOURT, C. R. (2012). Tratado de Direito Penal - Parte Especial. Vol. 2. Dos crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva.
BRASIL. (s.d.). CÓDIGO PENAL: DECRETO-LEI N. 2.848. Acesso em 22 de Julho de 2014, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm
BRASIL. (s.d.). CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Acesso em 22 de 07 de 2014, disponível em BRASIL: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
CAPEZ, F. (2013). Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva.
NUCCI, G. d. (2014). Código Penal Comentado. 14ª Edição. Rio de Janeiro: Forense.


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