AUTOR: André Porto
ORIENTADOR: Prof. Dtdo. Renan Marques
Birro
RESUMO: A partir do Édito de Rotário (Edictum Rothari d.C.
643), o artigo pretende traçar linhas gerais sobre do que se trata o Édito, e
as transformações do Direito Germano-romano entre os lombardos. Ele traz
consigo um apanhado sobre as leis do rei Rotário, retratando brevemente sua
relevância no cenário medieval, relacionando as leis lombardas às transformações
ocorridas no Direito a partir da comungação de ideias romanas e germânicas e
seus desdobramentos para o povo lombardo.
- INTRODUÇÃO
O
Édito de Rotário ou Edictum Rothari é
um código de leis elaborado pelo rei Rotário (reinado, 643-652) dos lombardos, grupo
germânico que ocupava uma região considerável da atual Itália. Este código
determinou a linhagem régia, enumerou as leis, descreveu os crimes e expõe as
sanções.
O povo de Rotário,
por ter raízes germânicas, tinha uma cultura e consciência altamente
beligerante. Assim, Rotário apresentou soluções para pacificar as lutas
clânicas, as vinganças generalizadas e querelas pessoais. Rotário desejava impedir os assassínios mútuos, em
certa medida a atitude digna de um verdadeiro lombardo. Desse modo, o código
legal era objetivo e definia claramente as penas para lesões ocorridas em
lutas, em detrimento do direito de vingança.
O
rei Rotário definiu o objetivo da construção legiferante:
“Desejamos
que essas leis sejam reunidas em um único volume, de modo que cada um possa viver
com segurança de acordo com a lei e a justiça, e na confiança de boa vontade
trabalhar contra seus inimigos e defender por si suas terras.”[1]
Portanto,
Rotário entendia que seu reino precisava de um ordenamento jurídico para que a
convivência pacífica entre seus conterrâneos fosse possível, principalmente
para manter a figura régia segura – um tanto instável se comparada a outras
culturas –, dentre outros aspectos que enfatizavam a “vida segura de acordo com a lei e a justiça”.
Contudo,
antes de prosseguir, vale frisar que o Direito apresenta características de
acordo com o tempo em que vige. À época romana entrou em vigência as noções de
público e privado. Para Bobbio, tal divisão pode ser tratada como a grande
dicotomia do Direito[2].
Na
Modernidade, a noção de direito público regula as relações jurídicas relativas
às atividades do Setor Público (no sentido moderno), bem como sua organização,
suas atividades, e as relações do Setor Público para com os cidadãos, moderando
o poder deste perante a fragilidade do último. E o direito privado cuidaria das
relações jurídicas entre particulares, e entre particulares e o Setor Público
(ou seus agregados), quando não estiverem em suas funções finais. Em suma, no
direito público, o sentimento legal seria em torno de um interesse geral ou bem
maior. Por outro lado, o direito privado abrange a vontade de um particular
sobre outro particular.
2.
DELINEAMENTOS
SOBRE O POVO LOMBARDO
A Península itálica
sofreu subsequentes ataques durante a Antiguidade Tardia e a Alta Idade Média.
Dentre estas incursões, destacarei a lombarda, que ocorreu em c. [circa do] séc.
VI. A história dos lombardos, antigos vinilos, teve
início a partir de diversas migrações étnicas para o Sul da atual Europa, motivadas
por rupturas internas, fuga de povos mais poderosos, ou pela busca de condições
melhores de subsistência e saques. Esses movimentos tiveram início no séc. I.
Tratados por autores clássicos como tribo nômade, os lombardos foram descrito
como germânicos ferozes e pouco numerosos. A origem do nome “lombardo” é
mitológica: Paulo Diácono afirmou que os vândalos procuraram os deuses para
pedir a vitória sobre os vinilos. Uma mulher pertencente aos vinilos agiu de
mesma maneira. O impasse foi resolvido a favor dos últimos: as mulheres dos
vinilos, sob orientação divina, soltaram seus cabelos de forma a parecerem
barbas e se colocassem ao lado de seus maridos na hora do combate. Assim, ao
nascer do Sol, atrapalhando a visão dos vândalos, ludibriaram seus adversários,
que bateram em retirada se perguntando “Quem são esses longarbarbas? E a partir de então os vinilos se tornaram os lombardos”
[3].
A rota percorrida
pelos lombardos, em consonância com outros povos em migração, passou por várias
plagas até seu destino final. Esse período é muito complexo e carece de dados
confiáveis pela dispersão multidirecional e por não obedecer a um trajeto
sistemático.[4]
- ÉDITO
DE ROTÁRIO E DIREITO ROMANO-GERMANO ENTRE OS LOMBARDOS
A
construção do Edictum em questão não ocorreu
sem uma história pregressa. Ele não se constituiu somente com as ideias de
Rotário, mas de toda uma construção oriunda do convênio cultural ocorrido entre
os germânicos e os romanos. O conteúdo é essencialmente germânico, enquanto a
marca romana é notável pela escrita e pelo modelo codificado, em detrimento de
emendas ou ratificações.[5]
Graças ao contato amistoso e belicoso
entre os romanos e outros grupos, ocorreu uma desconstrução dos conceitos
romanos sobre público e privado. Em contrapartida, nasceu uma relação jurídica
essencialmente privada e subjetiva. Eles deixaram a entender o quanto
“[...]
valorizam os bens pessoais, o alimento, o corpo, as mulheres, os grupos
familiares, as vinganças e os medos, a agressividade e as esperanças, as
concepções do sagrado, enfim, o acesso aos segredos do indivíduo.”[6]
Os
“invasores”, inclusive os lombardos, desejavam preservar certas tradições e
costumes, elementos que poderiam entrar em choque com a tradição jurídica romana,
sobretudo quanto à privatização das relações jurídicas.
De
maneira geral, os grupos de origem germânica demonstravam sérias dificuldades para
distinguir propriedades públicas e privadas. Por sua história tribal e nômade, eles
não dispunham do aparato jurídico romano num primeiro momento. Assim, as posses
individuais alcançavam grande valor, principalmente aquelas que pudessem levar
consigo em suas migrações.
O
direito romano não foi passivamente absorvido pelos lombardos. Entre outros
mecanismos de legitimação, o rei era mantido no poder graças à fortuna[7].
Em certa medida, as relações sociais longobardas eram muito militarizadas, não
sendo possível manter um governante ou linhagem de maneira segura. O monarca
poderia ser eleito na guerra ou quando o rei vigente estivesse em vias de
falecer. Muitos príncipes lombardos foram alçados ao seu posto em batalhas,
demonstrando com clareza o valor que era dado às questões belicosas e seus
valores personalizados.
Para
os lombardos, certos crimes como o homicídio eram menos graves que o roubo.
Muitas vezes o primeiro era tratado apenas com uma multa de acordo com o segmento
social do infrator (escravo, guerreiro, trabalhador livre, etc.). Por outro
lado, o roubo era punido até mesmo com a morte. Para ilustrar uma situação
análoga,
“[...]
Teodulfo, bispo de Orléans, homem de civilização romana, durante uma viagem de missus dominicus [enviado real] que
efetuou a Narbonnaise por volta de 798 queixou-se amargamente de ver o roubo
punido com a pena de morte e o homicídio com o pagamento de uma soma em
dinheiro. Era uma consequência inevitável da preferência de uma sociedade
guerreira pelos bens pessoais. Para gente nos limites da sobrevivência, ter
importa mais que ser. Santo Ambrósio chamava essa atitude de avareza; Gregório
de Tours, de rapacidade. Todavia, para essas águias de alto voo que eram os
germanos errantes e triunfantes, a morte constituía a melhor maneira de marcar
as fronteiras intransponíveis de seus bens privados.”[8]
Para os lombardos não
era diferente, pois
“A seus olhos, a suprema felicidade é
perder a vida no campo de batalha; morrer de velhice ou de acidente é um
opróbrio e uma cobardia que eles cobrem de horríveis injúrias; matar um homem é
um heroísmo para o qual não tem elogios que cheguem. O troféu mais glorioso
[além do botim] é a cabeleira de um inimigo escalpado”[9]
Em suma, a vida valia
menos do um bem que pudesse ser carregado em batalha ou migração. Por não se
fixarem em terra alguma, os lombardos desenvolveram técnicas de ourivesaria e
metalurgia excelentemente para as condições da época, o que demonstra não só a
importância dada aos bens, mas também formas de torná-los portáteis. Assim,
eles ressaltavam em essência várias ideias que circulavam sobre a guerra, o status, os butins, os bens e as leis.
Apesar do forte costume
consuetudinário, Rotário incorporou algumas inovações romanas. Uma de suas
principais preocupações foi não desligar a antiga legislação germânica ou a
memória da estirpe régia. A partir de Rotário, era vital confirmar a tradição
tribal lombarda em benefício de sua gens.[10]
Sinteticamente,
as leis de Rotário combatiam a desobediência, a violência corporal, a quebra da
paz social, danos materiais, acidentes de trabalho, sucessões, etc. Contudo, essas
resoluções de conflitos levavam em conta a esfera do privado.
O
Édito não definiu o formato organizacional
do reino, os limites territoriais ou normas públicas complexas, o que deixa transparecer
a fragilidade das relações sociais. As leis germânicas mais se assemelham a
leis de sobrevivência, vindo seus regulamentos a somente mediar os conflitos, situação
em que os bens (fundamentais para sobrevivência) estavam em jogo.
4.
O
PAPEL DO REI PARA OS LOMBARDOS
Os povos germânicos apresentavam
uma visão própria sobre a constituição de seus reis. Segundo Tácito, havia uma
diferença entre o rei, que exercia o cargo pela linhagem divina, e o chefe (duce), líder nato do grupo, clã ou tribo
eleito coletivamente, o que poderia fomentar uma nova estirpe divina.[11]
Embora os lombardos
fossem pouco numerosos, eles ofertavam evidências de força, destreza e
habilidade belígera. Graças ao pequeno número de guerreiros, eles
negligenciavam batalhas em campo aberto e preferiam combates singulares para
alcançar as vitórias. Em certos casos, um rei ou futuro rei estava envolvido
nesse tipo de querela.[12]
Conforme a Historia Langobardorum
de Paulo Diácono, os longobardos venceram várias batalhas graças a esta curiosa
opção de guerra. Ao destruir os principais guerreiros inimigos, eles
desestabilizavam sua capacidade de defesa e elevavam a força de ataque de suas
tropas.
Um excelente exemplo dessa prática foi a morte do rei gépido Cunimundo
pelas mãos do rei Alboíno. Cunimundo, ao desejar vingar-se dos ataques
lombardos, atacou Alboíno. Entretanto, os avaros, inimigos dos lombardos, haviam
feito um acordo de paz imprevisto e invadiram as terras gépidas. Esta brusca
mudança política forçou Cunimundo a focar seu ataque primeiramente com os longobardos.
Assim, de acordo com Paulo Diácono, “[...] no combate, Alboíno matou Cunimundo
decapitando-lhe e fez um copo de beber do seu crânio.”[13]
Assim,
“Os
reis são eleitos conforme a sua nobreza, mas os capitães, escolhidos segundo a
sua capacidade. O poder dos reis, entretanto, não é ilimitado ou absoluto e os
chefes comandam mais pelo exemplo dos seus atos e pelo atrevimento das suas
ações do que pela força da sua autoridade. Se se mostram ousados e destemidos e
conseguem arrebatar a vitória, governam sob admiração dos povos. Entretanto a
ninguém, a não ser aos sacerdotes, se consente o direito de açoitar, prender ou
matar: a pena não é considerada como castigo ou execução das ordens de um
comandante, mas imposta pelos deuses que, como crêem, presidem aos combates.”[14]
Desse modo, os reis eram eleitos por seus feitos, suas façanhas, sua ferocidade
e seus atos belicosos em batalhas. A permanência na função e a sucessão
dependiam de seu sucesso como comandante campal e de sua capacidade de liderar
seu povo em seus deslocamentos.
Tal relação não pode ser estabelecida com precisão quando se trata sobre
os períodos mais antigos, pois sua história é incerta. Contudo, alguns indícios
apontam que “[...] os lombardos foram comandados por chefes militares, os príncipes ou duces, em tempos primitivos, durante a migração do povo.”[15]
Como afirmado outrora, os reis lombardos manifestava uma origem divina,
mas justificava sua condição no campo militar. Os movimentos migratórios auxiliaram
na perpetuação dessas características. Ao migrar novamente, um novo líder era
eleito.
Uma pergunta desponta: o que ocorria quando não havia um candidato com
tais virtudes? Nesses períodos ocorria o interregno, quando um sucessor não
possuía legitimidade para apresentar-se como líder. Eram etapas marcadas pela
violência descontrolada e conflitos clânicos, que culminavam em eleições
régias.
Assim, nota-se a necessidade social do rei para manter o controle sobre
a natureza por meio sobrenatural, o futuro e o bem-estar do grupo. Era preciso
estabelecer tabus e crenças para preservar os lombardos. O Édito de Rotário, desse modo, dispunha de mecanismos para
preservação da segurança régia, como a primeira lei claramente demonstra: “1. O
homem que conspirar e oferecer conselhos contra a vida do rei será morto e seus
bens”[16]”.[17]
A realeza lombarda tem grande relevância na formação do povo lombardo.
Sem ela e sem sua legislação, não seria possível preservar sua cultura e manter
o reino vivo durante seus movimentos migratórios. “Não havia uma sequência
coerente de posse do reino, o que demonstra uma forte influência das
características tribais e míticas na formação da realeza e identidade lombarda.”[18]
***
O
Édito de Rotário, como outras
legislações dos povos germânicos, respondeu a uma cultura tipicamente privada,
em detrimento de outra que levava em consideração as relações públicas. O aparente
simplismo nas relações legais dos códigos germânicos, que tratam as infrações com
penas pecuniárias e violentas, oculta uma complexa circunstância que envolve
estratificações sociais, manutenção do poder, tradições, costumes e hibridismo
cultural relativo.
In fine, o Edictum é um exemplo medieval do direito
formado por aqueles que estão no poder de turno, isto é, daqueles que detém a
força de se imporem e legiferarem no processo de produção das relações
jurídicas e de seu ordenamento[19].
5.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BAK,
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Early Modern monarchic ritual. Berkeley: University of California
Press, 1990.
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PERPETUUS NOVEGIAE: A SACRALIDADE RÉGIA NA MONARQUIA NURUEGUESA E A
SANTIFICAÇÃO DE ÓLÁFR HARALDSSON (C. 995-1030) À LUZ DA LITERATURA NÓRDICA
LATINA E VERNACULAR (SÉCS. XI-XII). Niterói: UFF -
PPGH.
BLVHME,
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IMPENSIS BIBLIOPOLII HAHANIANI.
CASTELLANOS, A. R. (2013).
Transcrição de aulas do Prof. Dr. Angel Rafael Mariño Castellanos. Vitória, ES, Brasil.
DREW,
K. F. (1996). The lombard laws. Cinnaminson, New Jersey, USA: Weidner
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ROSENVALD, N. (2013). Curso de Direito Civil 1 - Parte Geral e LINDB
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FIORIO, J. M. (2011). Mito
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LE GOFF, J. (1995). A
CIVILIZAÇÃO DO OCIDENTE MEDIEVAL, Volume 1, 2ª Edição. Lisboa: Estampa.
ORTON, Previté. C.W
(1995). Historia del mundo en la Edad
Media. Tomo I. Barcelona: Editorial Ramon Sopena.
ROUCHE, M. (2009). História
da vida privada: do Império Romano ao ano mil (Vol. 1). (P. Veyne, Ed.,
& H. Feist, Trad.) São Paulo, SP: Companhia das Letras.
[1]
“In unum preudimus uolumine conplectendum, quatinus liceat unicuique salua lege
et institia quiete uiuere, et propter opinionem contra inimicos laborare, seque
suosque defendere fines.” (BLVHME, 1869).
[2] (FARIAS & ROSENVALD, 2013)
[3] (Paulo Diácono apud FIORIO, 2011)
[4] (FIORIO, 2011)
[5]
(ORTON, 1995:315)
[6] (ROUCHE, 2009)
[7]
Fortuna seria, segundo (BIRRO, 2013)
“[...] uma sorte ‘familiar’ pela
manutenção do heil tribal, conferida pela origem mítica dos reis
germano-escandinavos.”
[8] (ROUCHE, 2009)
[9] (LE GOFF, 1995)
[10] (FIORIO, 2011)
[11]
(TACITO apud FIORIO, 2011)
[12] (FIORIO, 2011)
[13] (FIORIO, 2011)
[14] (FIORIO, 2011)
[15] (FIORIO, 2011)
[16]
“Si quis hominum contra animam regis cotitauerit aut consiliauerit, animae suae
incurrat periculum, et res eius infiscentur.” (BLVHME, 1869)
[17] (FIORIO, 2011)
[18] (FIORIO, 2011)
[19] (CASTELLANOS, 2013)
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