O
ÉDITO DE ROTÁRIO (D.C 643) E A MEDIAÇÃO DA FAIDA ENTRE OS LOMBARDOS
André
Porto[1]
INTRODUÇÃO
O
presente texto se trata de um breve estudo sobre o Édito de Rotário (Edictum
Rothari, c.643), um código de leis oriundo do povo lombardo. O enfoque
deste pretende traçar linhas gerais sobre do que se trata o Édito, os lombardos
e alguns aspectos das relações jurídicas travadas entre si sob a influência
romana e germânica. A partir disto apresentará o tema da vingança privada, tão
ovacionada entre os povos germânicos e causa maior de seus litígios. Por fim, o
tema trata aspectos relativos ao sentimento de vingança entre os germânicos,
sobretudo os lombardos, e como as leis de Rotário mediavam este conflito.
PALAVRAS-CHAVE:
Édito de Rotário; Direito Medieval; História do Direito;
DESENVOLVIMENTO
A
faida (vendetta) ou a vingança para os povos germânicos era uma
constante em suas relações sociais uma vez que eles valorizavam os bens
pessoais. Grosso modo, os bens privados possuíam valor intrinsecamente maior do
que qualquer bem coletivo para estes grupos humanos, sobretudo os bens
“móveis”, isto é, aqueles que pudessem ser transportados em seus movimentos
migratórios.
Com
a desestabilização do Império Romano do Ocidente, a região da Península Itálica
sofreu migrações e razias de povos “invasores” durante a Antiguidade Tardia e a
Alta Idade Média. Dentre as várias investidas, destacarei a realizada pelos
lombardos, povo que se sedentarizou na região. De origem germânica, eles chegaram
à Itália durante o século VI d.C.
Autores
clássicos retrataram os lombardos como uma tribo nômade composta por germânicos
ferozes e pouco numerosos. A origem
do nome “lombardo” é mitológica: Paulo Diácono afirmou que os vândalos
procuraram os deuses para pedir a vitória sobre os vinilos. Uma mulher
pertencente aos vinilos agiu de mesma maneira. O impasse foi resolvido a favor
dos últimos: as mulheres dos vinilos, sob orientação divina, soltaram seus
cabelos de forma a parecerem barbas e se colocassem ao lado de seus maridos na
hora do combate. Assim, ao nascer do Sol, atrapalhando a visão dos vândalos,
ludibriaram seus adversários, que bateram em retirada se perguntando “Quem são
esses longarbarbas? E a partir de então os vinilos se tornaram os lombardos”.
(Paulo Diácono apud FIORIO, 2011).
Após
a sucessão de vários reis lombardos, vale ressaltar o governo de Rotário
(reinado, 643-652). Ele observou a necessidade de preservar seu povo e sua
cultura: uma das medidas para tanto foi a elaboração de um código legal que
visasse a redução da violência oriunda das lutas clânicas, das vinganças
generalizadas e das querelas pessoais. O monarca pretendeu evitar a resolução
de conflitos a partir de combates singulares, como convinha a um verdadeiro
lombardo. Durante a história lombarda, grandes batalhas entre clãs eram
motivadas por vingança. Deste modo, o código (ou Édito) de Rotário era direto e
conciso, pois definia claramente suas penas, colocando em segundo plano o
direito de vingança.
Rotário
escreveu:
Desejamos que essas leis sejam reunidas em um único
volume, de modo que cada um pode levar uma vida segura, de acordo com a lei e a
justiça, e na confiança mesmo de boa vontade pôs-se contra os seus inimigos e
defender ele mesmo e sua terra natal. (BLVHME, 1869)
A
construção do Edictum em questão não ocorreu sem uma história pregressa.
Ele não se constituiu somente com as ideias de Rotário, mas de toda uma
construção oriunda da imbricação cultural ocorrida entre os germânicos e os
romanos. O conteúdo é essencialmente germânico, enquanto a marca romana é
notável pela escrita e pelo modelo codificado, em detrimento de emendas e
ratificações (ORTON, 1995:315).
Apesar
dos fortes costumes e tradições germânicas, Rotário incorporou algumas
inovações romanas. Uma de suas principais preocupações foi não desligar a
antiga legislação germânica ou a memória da estirpe régia. A partir de Rotário,
era vital confirmar a tradição tribal lombarda em benefício de sua gens (FIORIO, 2011).
Sinteticamente,
as leis de Rotário combatiam a desobediência, a violência corporal, a quebra da
paz social, os danos materiais, os acidentes de trabalho, as sucessões, etc.
Contudo, essas resoluções de conflitos levavam em conta a esfera do privado.
Curiosamente,
o Édito não definiu o formato organizacional do reino, os limites territoriais
ou normas públicas complexas, o que deixa transparecer a fragilidade das
relações sociais. As leis germânicas mais se assemelhavam a leis de
sobrevivência, vindo seus regulamentos a somente mediar os conflitos, situação
em que os bens (fundamentais para sobrevivência) estavam em jogo.
Os lombardos
como eram beligerantes em suas relações sociais e a violência era um artifício
de resolução de problemas legitimado em sua cultura. O Édito, entre muitos
aspectos, desenvolveu principalmente o tema da vingança privada. As leis de
Rotário vieram para determinar como as pessoas de seu povo deveriam litigar
sobre a represália para arrefecer matanças mútuas e lutas indiscriminadas entre
clãs.
Rotário tratou a
vingança privada de forma pecuniária. De acordo com o tipo de lesões
decorrentes da violência sofrida por alguém, esta deveria ser compensada com
certo valor de acordo com a extensão da lesão e sua posição social. Assim, o
agressor devia uma compensação ao agredido, e este, ao receber seus soldos,
ficava impedido de exercer sua vingança pessoal. Eis, por exemplo, a
interpretação do Édito de Rotário para o assassinato:
14. Sobre o
assassinato (morth). Se alguém secretamente mata um homem livre ou um
homem ou uma escrava, se uma ou duas pessoas cometerem o homicídio, ele (ou
eles) pagarão 900 soldos como composição. Se houver mais de dois envolvidos,
cada um pagará o wergild do homem morto se ele era um homem livre
nativo, conforme sua posição (angargathungi). Se ele for um escravo ou
um liberto que foi morto, cada um deverá pagar composição de acordo com o seu
valor. Se eles defraudarem o corpo morto, isto é, se eles cometerem plodraub,
cada um deverá pagar oitenta soldos como composição pelo ato. (BLVHME, 1869).
Essas leis
protegiam a unidade lombarda, pois mediavam as tensões belicosas entre as
pessoas e os clãs. Um importante marco para a manutenção dessa estabilidade era
o estabelecimento de uma liderança com força suficiente para manter-se acima de
dos lombardos e dos clãs. Numa interpretação clássica proposta por Tácito, eis
as competências régias entre os germânicos:
Os reis são eleitos conforme a sua nobreza, mas os capitães, escolhidos
segundo a sua capacidade. O poder dos reis, entretanto, não é ilimitado ou absoluto
e os chefes comandam mais pelo exemplo dos seus atos e pelo atrevimento das
suas ações do que pela força da sua autoridade. Se se mostram ousados e
destemidos e conseguem arrebatar a vitória, governam sob admiração dos povos.
Entretanto a ninguém, a não ser aos sacerdotes, se consente o direito de
açoitar, prender ou matar: a pena não é considerada como castigo ou execução
das ordens de um comandante, mas imposta pelos deuses que, como creem, presidem
aos combates. (FIORIO, 2011)
Neste momento é bom observar que a citação acima pode ter sido em parte
corrompida com o tempo no processo de transmissão histórico. Embora o lapso
temporal possa ser grande, ainda é válido citá-lo pela sua experiência em
observar e buscar interpretações, a partir de sua cultura, de como os
germânicos (que ele teve contato) viviam e se relacionavam.
A lei de Rotário foi redigida em latim e apresentava um caráter breve.
Nesse sentido, havia a simples prescrição do acontecimento circunscrito pelos
artigos e a sanção para o fato. Também é notável a divisão das matérias
tratadas. Um exemplo foi a importância destinada ao regicídio, o primeiro item
desta matéria legal: “Aquele homem que conspira ou dá conselhos contra a vida
do rei devem ser mortos e os seus bens confiscados”. (BLVHME, 1869). Neste caso a intenção seria de
combater levantes aristocráticos e de novos candidatos ao
trono que costumavam ser frequentes. A ênfase na estirpe divina mencionada
anteriormente se coadunou ao Edictum para reforçar a posição do monarca
frente às ameaças.
O Édito também dispunha de leis que cerceavam a vingança privada,
na tentativa de coibir os atos de vendetta:
143. Quanto ao homem que busca vingança depois de aceitar composição. Se
um homem livre ou escravo é morto, a composição for paga pelo homicídio e
juramentos forem oferecidos para evitar a contenda, e depois que ele recebeu a
composição houver tentativa de vingança por ter matado um homem pertencente aos
associados de quem recebeu o pagamento, ele deve restituir o dobro da
composição aos parentes do homem livre ou ao senhor do escravo. Da mesma
maneira, caso ele tente a vingança depois de aceitar compensação por golpes ou ferimentos,
ele restituirá o que ele aceitou em dobro. Além disso, ele deverá pagar
composição, conforme previsto acima, se ele matou o homem. (BLVHME, 1869).
Outros tipos de lei também foram abordados para tratar os problemas da
vida cotidiana, como os acidentes com trabalhadores:
152. Em relação à morte no trabalho de um trabalhador contratado. Se
alguém procura e contrata operários e por acaso um deles se afoga, é atingido
por um raio, é morto por uma árvore derrubada pelo vento, ou morre de morte
natural, o homem que procurou e contratou o trabalhador não deve ser
responsável por danos, porque o trabalhador não morreu pela ação do homem que o
contratou ou por seus homens. Se um dos operários é morto ou ferido por alguém,
no entanto, quem for responsável pela morte ou lesão pagará composição. (BLVHME, 1869).
No entanto, o Édito, como exposto outrora, não desnudou situações
mais complexas, como a organização do governo, a delimitação de territórios de
seu povo, etc. Rotário e seus conselheiros mantiveram a atenção apenas na
limitação do poder de ação e do ímpeto de vingança por parte dos lombardos.
Basicamente, sua tessitura ocorreu com o intuito de controlar a beligerância
entre os seus, que entravam em choque por razões banais, cotidianas ou após
conflitos familiares.
CONCLUSÃO
A vingança foi
uma característica marcante dos povos germânicos e também um fator importante
na conformação de sua cultura e consequentemente de suas leis. Os lombardos,
por seu caráter beligerante, demonstraram no Édito de Rotário uma
preocupação em perpetuar a tradição e a identidade – inclusive no âmbito
legislativo –de seu povo. Neste ínterim, eles desejavam evitar as lutas entre os
clãs e a manutenção mesmo que precária da paz social entre seus conterrâneos.
Embora pareçam precárias, é preciso considerar as dificuldades para criar leis
mais complexas no contexto abordado. A legislação de Rotário foi, assim,
inovadora dentro dos limites culturais e sociais da Península Itálica daquela
época.
Ademais, a visão
dos legisladores demonstra qual eram, na leitura destes homens, os motivos que
levavam ao desequilíbrio a sociedade lombardo-romana. A menção aos vários
extratos sociais – escravos, homens livres, monarcas – reforça a tentativa de
composição de um instrumento legal holístico.
Deste modo, uma
análise da História do Direito aliada à História Social pode contribuir
decisivamente não apenas para descrever o desenrolar do pensamento jurídico e
legislativo no decorrer da História, mas também para entrever e identificar as
verdadeiras preocupações e as visões de mundo dos governantes lombardos na Alta
Idade Média, período que sofre pela escassez de fontes e novas leituras.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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monarchic ritual. Berkeley: University of California Press, 1990.
BIRRO, R. M.
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E A SANTIFICAÇÃO DE ÓLÁFR HARALDSSON (C. 995-1030) À LUZ DA LITERATURA NÓRDICA
LATINA E VERNACULAR (SÉCS. XI-XII). Niterói, RJ: UFF - PPGH.
BLVHME, F. (1869).
EDICTVS CETERAEQVE LANGOBARDORVM LEGES. HANOVERAE: IMPENSIS BIBLIOPOLII
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DREW, K. F. (1996). The lombard laws. Cinnaminson, New
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FIORIO, J. M.
(2011). Mito e Guerra na História Longbardorum. Vitória, ES: DLL/UFES.
LE GOFF, J. (1995). A Civilização
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ORTON,
Previté. C.W (1995). Historia del mundo en la Edad Media. Tomo
I. Barcelona: Editorial Ramon Sopena.
ROUCHE, M. (2009).
História da vida privada: do Império Romano ao ano mil (Vol. 1). (P.
Veyne, Ed., & H. Feist, Trad.) São Paulo, SP: Companhia das Letras.
[1] Acadêmico
do Segundo Período do Curso de Bacharelado em Direito/UFES, pesquisando sobre a
inserção do Direito na época medieval europeia. Sendo orientado pelo Professor
Me. Renan Marques Birro do curso de História/ UNIFAP.
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